Aquele beijo que eu te dei
Por Honório de Medeiros
O beijo que eu presenciara, entre dois adolescentes, qual a Madeleine de
Proust, me remeteu para um passado distante, no qual minha memória se
deleitou e se abateu com as imagens borradas de vultos que transitavam
em nosso entorno, sons não identificáveis e odores misturados de
perfumes e suor, enquanto sentados por sobre um batente qualquer, nós,
eu e ela, de quem sequer lembro o nome, ou mesmo o rosto, exceto,
apenas, o vulto esmaecido de um rosto claro, cabelos negros, lisos,
cortados curtos à moda Príncipe Valente, e lábios cheios, fartos,
trocamos meu primeiro beijo.
Dias mágicos aos quais fui conduzido pelo trem no qual meu pai, um dia,
muito antes, havia sido chefe. Somente isso já valera a pena.
A sensação de liberdade que a primeira viagem sozinho originou foi
alimentada pelas cervejas tomadas com o amigo recém-adquirido no
restaurante para o qual minha curiosidade me impeliu. Ali meu pai
trabalhara, durante muito tempo.
Na chegada, na cidadezinha onde iria haver o casamento de uma prima
distante, eu me misturei com uma legião de parentes desconhecidos aos
quais eu me apresentava como representante dos meus pais.
Entre homem e menino, logo, logo, porém, me esqueci da missão
diplomática que me havia sido confiada, e me aventurei com alguns primos
por uma caminhada até uma fazenda remota na esperança de em lá
chegando, saciaríamos nossa fome com mangas saborosas que embora
fartamente consumidas, não resolveram o problema que somente a bondade
de um morador, ao nos oferecer farinha amassada com feijão de corda e
rapadura, finalmente deixou para trás.
Como esquecer o sabor e o cheiro daquele almoço inesperado?
À noite, o casamento e, em seguida, a festa no Mercado.
Lá, olhares e um convite para uma dança canhestra, logo esquecida, nos
aproximou. Sentamo-nos em um batente qualquer. Pouco nos dissemos.
Em um momento especial, no qual o tempo e o espaço pareciam suspensos,
nos beijamos naturalmente, e o beijo teve um sabor de bala de hortelã e
de algo mais que não sei descrever. Não creio que alguém esqueça o
primeiro beijo. Nunca esqueci o meu.
Já na volta para minha cidade natal, no mesmo trem, eu me perguntava se algum dia ainda conseguiria encontrá-la.
Dentro de mim achava que não, mas nutria alguma esperança. Não porque
ansiasse por outros beijos seus, ou mesmo porque lhe tivesse algum afeto
irrompido naquela noite especial. Não por que quisesse ter a saudade
erótica de um corpo que a noite festiva apresentara apenas nuançado. Não
se trata disso.
O que eu queria era observar, até mesmo distante, de longe, e gravar
para todo o sempre, e assim pudesse convocar quando desejasse a
lembrança detalhada daquela bela adolescente que uma noite, na qual
quase não nos falamos, me deu meu primeiro beijo.
Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Governo do Estado
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