FHC vê mensalão como xeque-mate contra o PT
No seu artigo deste domingo, o ex-presidente narra um encontro de
intelectuais em que foi instado a reconhecer os avanços sociais dos
governos petistas, maiores do que em seus dois mandatos; sua resposta,
apresentada como "xeque-mate", foi o mensalão; José Serra, também
presente, condenou a suposta "desindustrialização" em curso e a
acomodação de interesses clientelísticos pelos governos petistas
247 - Em seu artigo deste domingo, o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso narra um encontro recente com José Serra,
ex-governador de São Paulo, e o professor Roberto Schwarz, da USP.
Enquanto a conversa fluía, FHC foi instado por Schwarz a reconhecer os
avanços sociais dos governos petistas, maiores do que nos oito anos de
seus dois mandatos. E sua resposta, apresentada como xeque-mate, foi o
mensalão. Serra condenou a suposta desindustrialização em curso. Leia
abaixo:
Após os dias tórridos da passagem do ano, São Paulo se tornou mais
amena. As férias escolares, o trânsito menos atormentado, os cinemas
mais vazios e a temperatura agradável convidavam ao lazer.
Assisti a um filme admirável, Amour, no qual dois atores (Emmanuelle
Riva e Jean-Louis Trintignant) dirigidos por Michael Haneke desenvolvem a
trama do relacionamento entre um casal de velhos músicos que leva uma
vida confortável, para os padrões europeus, embora sem serviços
domésticos e isolado dos familiares. Além do mais, contratempos na
velhice podem ser sofridos.
O derrame da senhora não abala a ternura do marido. Mas o cotidiano é
duro: ela tem de ir ao banheiro carregada, o marido tem de dar de comer à
sua boca, etc. Diante da piora da saúde da mãe, a filha tem
dificuldades para entender e lidar com a situação, denotando mais
angústia do que afeição e, quiçá, alguma preocupação material com o que
possa sobrar. O genro é insuportável e os netos nem aparecem. Resultado,
os dois velhos vão se consumindo num mundo que é só deles entre boas
recordações e desespero até um derradeiro gesto de amor.
São assim as relações humanas. Ambíguas, cambiantes, cheias de paixão e
ódio. Mas em cada geração, mesmo na tensão e na discórdia, um entende a
linguagem do outro. A vivência das mesmas situações cria referências
culturais que acolchoam a razão. Foi sob o impacto emocional de Amour
que participei de um jantar com o casal Grécia e Roberto Schwarz, amigos
de mais de 50 anos. De tempos em tempos nos vemos, mantendo a amizade,
embora no campo político estejamos apartados.
No jantar em um restaurante, começamos a conversa lembrando um amigo
comum, Albert Hirschman. O grande intelectual recentemente falecido teve
influência enorme sobre todos nós, como pessoa e como intelectual, o
que tornava amena a conversa. Ele era uma espécie de renascentista
contemporâneo, bricoleur de palavras e ideias, que não apreciava as
“grandes teorias”, mas que com suas miniaturas lançava luz sobre a
história e a natureza dos conflitos sociais e humanos.
Por coincidência, no dia aprazado para o jantar, José Serra (outro amigo
com quem convivo há mais de cinco décadas) marcara um encontro em minha
casa. Minhas conversas com Serra são longas, de horas a fio. E
raramente terminam no mesmo dia, posto que não seja notívago. Serra
chegou indisposto. Imaginei que a conversa seria amarrada. Mas logo, com
franqueza suficiente para cada um saber o que o outro pensa, fluiu bem.
De repente, olhei o relógio e adverti: daqui a pouco chegará o Roberto.
Serra permaneceu.
Passado o momento de convergências, Roberto me perguntou: quando vocês
(em tese) eram socialistas, o que queriam e no que acreditavam?
Respondi: nosso objetivo era maior igualdade, o meio para isso seria
eliminar a apropriação privada dos meios de produção; tudo mais era
secundário, mesmo a liberdade. Pensei comigo: havia variações na
esquerda, os trotskistas há muito denunciavam o terror estalinista,
embora alguns de seus líderes também o houvessem praticado; a “esquerda
democrática”, mais liberal, não era comprometida com práticas contra a
liberdade. Fiquei pensando: o que tem a ver esta discussão com os dias
atuais? Quem ainda pensa em “controle coletivo” dos meios de produção?
Só mesmo os nacional-desenvolvimentistas que amam o capitalismo dirigido
e identificam o estado com o coletivo, mas nem por isso são de
esquerda.
Noutro momento, Roberto, mais fiel às teses clássicas da esquerda,
comenta: você não acha que, mesmo sem referência explícita às classes
sociais e suas lutas, elas existem e é preciso uma teoria que as situe
em função da forma contemporânea de acumulação de capital, inclusive na
China? Eu respondo: acho, sim; mas teria de ser proposta uma nova teoria
geral do capital e das relações de produção, pois a globalização
alterou muita coisa. Não parece que a oposição burguesia/proletariado
tenha a vigência que teve no passado. A dissolução do conceito de classe
nas “categorias de renda” chamadas classes A, B, C, D, ou nesta “nova
classe média”, dificilmente se sustenta teoricamente, acrescentei.
Outra vez, olhando a atualidade, quem, na esquerda, no centro, na
direita, ou seja em qualquer lugar do espectro político vigente, pensa
nestas questões? O governo do PT é o primeiro a se jactar da expansão
das “novas classes médias” e de comemorar os êxitos do capitalismo,
ficando envergonhado quando o “pibinho” parece comprometê-los.
Passando de considerações abstratas para terrenos mais concretos, Serra
criticou duramente a desindustrialização em curso, os desmandos na
administração pela penetração de interesses políticos e clientelísticos,
enfim a condução do PT. Ao que Roberto redarguiu como era de esperar:
mas houve avanços sociais inegáveis. E eu acrescentei, que começaram no
meu governo... Está bem, disse, mas ganharam maior dimensão com o PT.
Vejam o acesso às universidades com as cotas. Por fim, cheque- mate: e o
mensalão? Ah!, mas é a “direita” quem se regozija com as condenações,
embora, sem elas, a Justiça estaria comprometida. Serra, mais incisivo: e
o PT é “de esquerda”? Silêncio geral. As categorias com que
concordávamos nos inibiam de classificar partidos atuais na escala
antiga na qual fôramos formados.
Pode parecer que o desentendimento era geral. Mas não. Conversávamos
como quem vivera uma mesma história política e cultural. Era um diálogo
entre pessoas da mesma geração, apesar das discordâncias eventualmente
existentes. Será que o tipo de diálogo que tivemos faz sentido para as
novas gerações? Ou Fernando Gabeira tem razão: as diferenças
contemporâneas são comportamentais (ser ou não evangélico, aceitar ou
não o casamento gay, ser “verde” ou “jurássico” etc.). O diálogo
caloroso e, para nós, interessante, que nos levou insensivelmente a
recuar no tempo terá algum sentido para as novas gerações ou, para elas
nós seremos “os outros”?
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